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A
Espanha e Portugal são, com a Rússia e os países balcânicos (e em certos sentidos
também a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica
com outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição,
menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante mantém um
patrimônio necessário.
Foi a
partir da época dos grandes descobrimentos marítimos que os dois países
entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso tardio deveria
repercutir intensamente em seus destinos, determinando muitos aspectos
peculiares de sua história e formação espiritual. Surgiu assim um tipo de
sociedade que se desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das
congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento, que já não
trouxe em germe.
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Pode
dizer-se, realmente, que pela importância peculiar que atribuem ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos
semelhantes no tempo e no espaço, devem aos espanhóis e portugueses muito de
sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se,
antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não
necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu
esforço próprio, de suas virtudes.
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Essa
concepção espalha-se fielmente em uma palavra bem hispânica, “sobranceria”,
palavra que indica inicialmente a ideia de superação. Mas luta e emulação que
ela implica era tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas,
recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelo governo.
É
dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização de
todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos.
Em terra onde todos são
barões não é possível
acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida.
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A
frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns
dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se
nelas Portugal e Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui
facilmente, com a cumplicidade a indolência displicente das instituições e
costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram
continuamente no sentido de separar os homens, não de uni-los. Os decretos dos
governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de
refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de
se associarem permanentemente as forças ativas.
A
falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, em fenômeno
moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à
tradição, a certa tradição, a única defesa possível contra nossa desordem.
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Nossa
anarquia, nossa incapacidade de organização sólida, não representam, a seu ver,
mais do que uma ausência da única ordem que lhes parece necessária e eficaz. Se
considerarmos bem, a hierarquia que exaltam é precisa de tal anarquia para se
justificar e ganhar prestígio.
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Assim,
a sociedade dos homens na terra não pode ser um fim em si. Sua disposição
hierárquica, posto que rigorosa, não visa à permanência, nem quer o bem-estar
no mundo. Não há, nessa sociedade, lugar para as criaturas que procuram a paz
terrestre nos bens e vantagens deste mundo. A comunidade dos justos é
estrangeira na terra, ela viaja e vive da fé no exílio e na mortalidade.
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A
Idade Média mal conheceu as aspirações conscientes para uma reforma da
sociedade civil. O mundo era organizado segundo leis eternas e indiscutíveis,
imposta do outro mundo pelo supremo ordenador de todas as coisas. Por um
paradoxo singular, o princípio formador da sociedade era, em sua expressão mais
nítida, uma força inimiga, inimiga do mundo, inimiga da vida.
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No
fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal
entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade
é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas ideias revolucionárias,
portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade
específica, a injustiça social de certos privilégios, sobre tudo dos
privilégios hereditários.
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Efetivamente,
as teorias negadoras do livre arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança
e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles se sentiram muito à
vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não
encontrassem pleno reconhecimento.
Foi
essa mentalidade, justamente, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao
espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes,
e, sobretudo de calvinistas. Porque, na verdade, as doutrinas que apregoam o
livre arbítrio e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da
associação entre os homens. Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização
da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio
unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou,
incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma
força exterior, que nos tempos modernos encontrou uma das suas formas
características nas ditaduras militares.
Um
fato que não se pode deixar de tomar consideração no exame da psicologia desses
povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no
culto ao trabalho. Sua atitude normal é precisamente o inverso da teoria,
corresponde ao sistema do artesanato medieval, onde se encarece o trabalho
físico, denegrindo o lucro, o “lucro torpe”. Só muito recentemente, com prestígio
maior das instituições dos povos do Norte, é que essa ética do trabalho chegou
a conquistar algum terreno entre eles. Mas as resistências que encontrou e
ainda encontra tem sido tão vivas e perseverantes, que é lícito duvidar do seu
êxito completo.
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A
ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica submissão a um objeto
exterior, aceitação de uma lei estranha ao indivíduo. Ela não é exigida por
Deus, nada acrescenta à sua glória e não aumenta nossa própria dignidade.
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Uma
digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um
bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana do pão a cada dia. O que
ambos admirem como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer
esforço, de qualquer preocupação.
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Também
se compreende que a carência dessa mora do trabalho se ajustasse bem a uma
reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde,
anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e,
como tal estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre
eles. Onde prevaleça uma forma qualquer de moral do trabalho dificilmente
faltará à ordem e a tranquilidade entre os cidadãos, porque são necessárias,
uma e outra, à harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e
portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira
que fossem precárias, nessa gente, as ideias de solidariedade.
A bem
dizer, essa solidariedade, entre eles, existe somente onde há vinculação de sentimentos
mais do que relações de interesse, no recinto doméstico ou entre amigos.
A
autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão
fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a
renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior.
A
experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e
elabora em geral traços de outras culturas, quando estes encontram uma
possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre
lembrar o que se deu com as culturas europeias transportadas ao novo mundo. Nem
o contato e a mistura com as raças indígenas, ou adventícias fizeram-nos tão
diferentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No
caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns de
nossos patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal
especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje,
uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá
nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que sujeitou mal
ou bem a essa forma.